1. Nós, Chefes de Estado e de Governos, reunimo-nos na Sede da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, entre os dias 6 e 8 de Dezembro de 2000, no início de um novo milénio, para reafirmar a nossa fé na Organização e na sua Carta como bases indispensáveis de um mundo mais pacífico, mais próspero e mais justo. […]
15. Decidimos também ter em conta as necessidades especiais dos países menos avançados. Neste contexto, congratulamo-nos com a convocação da Terceira Conferência das Nações Unidas sobre os Países Menos Avançados, que irá realizar-se em Maio de 2001, e tudo faremos para que obtenha resultados positivos. Pedimos aos países industrializados: - que adoptem, de preferência antes da Conferência, uma política de acesso, livre de direitos aduaneiros e de cotas, no que se refere a todas as exportações dos países menos avançados; - que apliquem sem mais demora o programa melhorado de redução da dívida dos países mais pobres muito endividados e que acordem em cancelar todas as dívidas públicas bilaterais contraídas por esses países, em troca de eles demonstrarem a sua firme determinação de reduzir a pobreza; e - que concedam uma ajuda ao desenvolvimento mais generosa, especialmente aos países que se estão genuinamente a esforçar por aplicar os seus recursos na redução da pobreza;
16. Estamos também decididos a abordar de uma forma global e eficaz os problemas da dívida dos países em desenvolvimento com rendimentos baixos e médios, adoptando diversas medidas de âmbito nacional e internacional, para que a sua dívida seja sustentável a longo prazo.
O problema do sobre-endividamento dos países subdesenvolvidos, especialmente aqueles situados na África Austral, tal como hoje o entendemos, é apenas um de múltiplos flagelos que assombra a grande comunidade de Estados, ou pseudo-Estados, situados abaixo da orla do Sahara. No entanto, acredito que a agenda internacional da Comunidade Internacional não reflecte verdadeiramente as preocupações e causas que resultam neste subdesenvolvimento crónico, sendo até em parte, responsável pelo mesmo. O objectivo do milénio supra demonstra exactamente esse descomprometimento político-económico, para não o classificar como imoral, para com países como a Somália, República Democrática do Congo, Gana, Serra Leoa, entre outros.
(A dívida externa africana, 2005. Fonte: Banco Mundial) Com efeito, o sobre-endividamento é provavelmente a herança mais pesada que a colonização e subsequente descolonização imputaram às dezenas de Estados africanos que viriam a sua própria Primavera dos Povos manchada por altos níveis de corrupção, administrações estatais incipientes ou severamente desmobilizadas, instituições públicas castradas, quando não se deparavam face a conflitos étnicos de secessão ou luta por poder. Lutando contra um visível atraso político e económico-social em termos relativos, assim como ao enorme desafio que lhes esperava na (re)construção dos respectivos aparelhos estatais funcionais, investidores sedentos de novos potenciais e enormes mercados para onde direccionarem os seus capitais “estagflacionados”, cedo acederam aos pedidos generalizados de empréstimo provenientes da maioria destes países sub-saharianos, as mais das vezes sem acordos de médio-longo prazo definidos, e com facilidades tais que permitiam o enviesamento das responsabilidades dos próprios receptores. Assim, durante as décadas de 1970 e 80, e perante um cenário ideal para todos os credores internacionais, com especial ênfase para aqueles que anteriormente detinham soberania imperial sobre os territórios recém independentes, assistimos a uma subida vertiginosa da dívida externa destes países. Os mesmos viriam a sucumbir de diversas circunstâncias, que previsivelmente desvirtuaram todo o sistema de crédito existente até então, afundando as economias domésticas em pagamentos avultados de dívidas e juros que requeriam, mais e mais, o sacrifício dos orçamentos nacionais para honrarem esse compromisso externo.
Devido a este sobre-endividamento, países como a República Democrática do Congo ($10 mil milhões), a Zâmbia ($2.513 mil milhões), os Camarões ($3.688 mil milhões), Angola ($10.66 mil milhões), ou o Botswana ($483 milhões), são obrigados a redireccionar as suas parcas fontes de rendimento externo e interno para o “mero” pagamento dos juros que Estados e organizações internacionais exigem como forma de recompensarem algumas das perdas que assombraram os seus investimentos em décadas antecedentes. Em suma, e como poderemos observar na figura 1., todo o continente africano antes sobrevive num sistema económico mundial desigual e penalizante para as suas economias emergentes, enquanto impossibilitam simultaneamente qualquer projecto reformista de longo alcance capaz de abordar as várias problemáticas societais de forma coerente e, tanto quanto possível, assertiva.
(High Index Values relativos à Pobreza, para o ano de 2004. Fonte: Answers.com) Nesta lógica, a Declaração dos Objectivos do Milénio, um documento já icónico na história das Nações Unidas, mais não seja pela prova de boa-fé demonstrada aquando a sua implementação no virar do século, e do milénio, pretendia representar um “turning point” nesta temática. Projectando uma redução parcial e “sustentável” da dívida externa dos países mais afectados, promovendo entretanto as economias que melhores resultados demonstrassem pela atribuição de fundos com condições apriorísticas cada vez menores, os DOM afiguravam-se a intenção última de erradicar definitivamente a pobreza até 2015. Não obstante o manifesto optimismo característico de fin-de-siécles, é da minha opinião que o texto não passa de mais uma expressão de vontades benignas que falham atacar o problema pelas suas diversas raízes. E uma delas, senão a maior, é precisamente o sobre-endividamento dos países “menos avançados”. Salvaguarda seja feita, também não acredito que um completo perdoo das mesmas dívidas fosse a resposta desejável caso os Objectivos do Milénio fossem um verdadeiro projecto da Comunidade Internacional a atingir em 2050.
Sim, decerto que a elaboração dos DOM padeceu de uma eloquência devaneia aquando da sua feitura para que, em conjunto com representantes embriagados com um fim da História eminente, ao mesmo tempo que foram bradados aos céus rumo aos quatro cantos do mundo. A data prevista de 2015, para além de inverosimilmente alienada, senão mesmo catastroficamente naif, constitui um rude golpe não só nas premissas sobre as quais a própria ONU assenta, como ainda no compromisso realizado universalmente pela Comunidade Internacional em prosseguir intentos estritamente universais. Aliás, qual a legitimidade que as Nações Unidas lograrão quando, no final de 2015, proferirão um novo discurso de promessas mal-acabadas e tomadas de empréstimo a teses especulativas de burocratas desejosos de novos aumentos no orçamento da organização, chupando orçamentos para projectos inviáveis, colocando em risco aquelas problemáticas que corresponderiam ao perfil ideal de actuação calculada com sucesso tendencialmente garantido, permitindo assim a construção de uma autoridade internacional devidamente representativa das vontade geral dos Estados em respeitar a Carta. Em vez disso, parecem seguir-se políticas subservientes a interesses estatais particulares, ou mesmo grupais, que condenam a iniciativa autónoma à acomodação de problemas mais problemáticos que outros. Assim acautela-se este equilíbrio de potências assimétricas e aparentemente anti-hegemónicas, que à falta de um denominador comum suficientemente mobilizador que congregue uma larga porção da Comunidade Internacional face a um perigo comum e abrangente, que a Guerra contra o Terrorismo parece vir a desgastar, ou inclusive a reverter a suposta unidade multi-vectorial de interesses.
(Índices de Crescimento do Produto Interno Bruto per capita, entre 1990-2002. Fonte: Answers.com) Nesta óptica, a complexidade das relações internacionais parece impregnar todas as antevisões analíticas e estudos de conjuntura de prioridades conjunturais ao nível estrutural, relegando questões consideradas secundárias ou colaterais para planos inferiores de negociação multilateral, como é o caso do sobre-endividamento. De facto, finda a Guerra-Fria, o único fórum internacional que tem vindo a utilizar uma retórica declaradamente desenvolvimentista e consagrada aos países subdesenvolvidos é o G7+1. Até a célebre Reunião de Davos admite como problemática mais premente as alterações climáticas, admitindo o seu impacto nestes países como simples modelos calculistas de catástrofes ambientais, nos quais aqueles que menos contribuem para a emissão de gases de efeito de estufa são aqueles que sofrerão primeiramente os efeitos climatéricos. Não que as alterações climáticas não representem um genuíno problema de consequências globais, como variadíssimas investigações científicas assim o demonstram, mas o que é condenável é a utilização da mesma retórica pró-desenvolvimento dos desfavorecidos como mecanismo propagandístico de índole populista, pretendo apaziguar a consciência daqueles contribuidores que se orgulham de pertencerem à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
As relações internacionais devem paulatinamente estudar as problemáticas que realmente apresentam um desafio de futuro para o equilíbrio entre potências de variada ordem, e não somente aquelas poucas que encabeçam a lista dos Estados nucleares ou de ideologia questionável. Esquece-se com alguma frequência que grande parte da Comunidade Internacional é composta por Estados que, devido a circunstâncias várias, não gozam dessa visão globalizada das relações internacionais; países que fazem de reformas agrárias e acordos comerciais de bens de primeira necessidade a sua única agenda internacional, olhando o vizinho como um verdadeiro elo essencial para o seu desenvolvimento interno; estes são os países que dependem de terceiros para garantirem alguma estabilidade política e económica de permanência aceitável à consolidação de instituições para nós consuetudinárias como eleições, segurança social, centros de saúde e anos civis com permissão a férias remuneradas.
O sobre-endividamento é, definitivamente, um problema com causas múltiplas e efeitos variados, ao qual poderíamos acoplar indefinidamente questões como pobreza, subnutrição, falta de infra-estruturas sociais, sistemas de saúde deficitários, e todos os males que enumeramos comummente a países em vias de desenvolvimento, eufemisticamente falando.
Material didático:
- World Fact Book https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/fields/2079.html
- PNUD
http://www.undp.org/